29.5.20

Jamaica, Azambuja, Banco Alimentar: os pobres da covid-19 e a nossa hipocrisia



«Um dos meus livros de economia preferidos chama-se “The Economics of Poverty” e foi escrito por Martin Ravallion, um estudioso da pobreza e antigo diretor do departamento de investigação do Banco Mundial. Ravallion começa logo nas primeiras páginas com a pergunta “Porque existe pobreza?” e explica que existe uma longa tradição intelectual de culpar as mulheres e homens pobres pela sua condição, atribuindo-lhes estereótipos como o de serem preguiçosos, irracionais, incapazes de gerir a sua vida. Esta velha tradição intelectual de separar o mundo entre “nós” e “eles” reflete-se na organização da sociedade e da economia e, infelizmente, uma parte destes estereótipos sobreviveram até ao dia de hoje no nosso subconsciente coletivo. Vem isto a propósito da crise causada pela pandemia. Raramente na história recente a separação entre os privilegiados e os destituídos foi tão crua.

Comecemos pelo confinamento que, quando nasce, não é para todos. O surto nas plataformas logísticas da Azambuja ou a fábrica de conservas em Peniche, que enviou esta semana 200 funcionários para casa devido a um caso positivo, mostram que nem toda a gente pode proteger-se do risco de contágio. Desconhecemos que medidas de segurança foram implementadas nestas fábricas e armazéns. Não sabemos quantas pessoas esconderam sintomas por medo de perder uma parte do pouco rendimento que têm. Mas sabemos que não conseguimos coletivamente proteger estes trabalhadores mal pagos e com poucos direitos laborais, que carregam nos ombros o que de mais essencial flui na economia, como a comida para os supermercados.

Como uma desigualdade nunca vem só, a do rendimento mistura-se nesta história com a étnica e de país de origem. Segundo os jornais, muitas pessoas que trabalham nas empresas afetadas na Azambuja são imigrantes jovens, que se deslocam para o trabalho de comboio, a partir de bairros periféricos da Área Metropolitana de Lisboa. Os hostels de Lisboa também concentravam imigrantes, provavelmente com trabalhos precários e mal pagos, a viver em espaços sobrelotados no limite da indignidade. Agora temos um surto no Bairro da Jamaica, onde as autoridades se preparam para encerrar os cafés para evitar que o contágio se generalize. Aparentemente, uma festa no início de maio estará na origem dos contágios. É que isto de aguentar o confinamento depende muito da qualidade do sofá, da velocidade da internet e da variedade do que há no frigorífico. Para os jovens do Bairro da Jamaica e do vizinho Santa Marta é menos suportável do que para a burguesia do teletrabalho onde me incluo.

Serão estes exemplos fruto do acaso? Em Portugal não temos como quantificar estes fenómenos, mas no Reino Unido e Estados Unidos, onde há informação étnica e disponibilidade de dados, há vários estudos que mostram como as minorias étnicas são mais afetadas pela covid-19. No dia 8 de maio, o The Lancet publicou o artigo “Evidence mounts on the disproportionate effect of covid-19 on ethnic minorities”. O título é sugestivo, os números também. No Reino Unido, a taxa de letalidade entre as pessoas de ascendência africana é 3,5 vezes maior do que a dos brancos britânicos. Já os caribenhos e paquistaneses morrem 1,7 e 2,7 vezes mais do que os brancos. Em Nova Iorque, um estudo mostra que as mortes entre os negros são de 92,3 por 100 mil habitantes e entre hispânicos e latinos de 74,3, o que contrasta com menos de 50 por 100 mil para brancos e asiáticos.

O The Lancet afirma que a diferença na prevalência de doenças crónicas entre estas comunidades e os brancos não é suficientemente elevada para explicar por si só as discrepâncias na mortalidade, e explica que estas pessoas “trabalham muitas vezes em empregos que os colocam em risco, como de atendimento ao público e transporte de mercadorias ou entregas, e é menos provável que tenham empregos que lhes permitam fazer teletrabalho”. Qualquer semelhança com os trabalhadores da Azambuja e de Peniche ou os residentes dos hostels não é mera coincidência.

Lembrei-me ontem de Martin Ravallion a propósito do esquema de apoio de emergência aos artistas da Câmara de Lisboa, que exigia em troca até 30 horas de trabalho. A capa do livro de Ravallion é uma fotografia de uma “workhouse” para pobres da Inglaterra vitoriana, uma estrutura de acolhimento e trabalho típica das políticas de combate à pobreza daquele período. Como nos explica Ravallion, encontramos nos dias de hoje heranças deste passado negro nos apoios ao rendimento com componentes “workfare”, que é como quem diz: obrigação de trabalho em troca de transferências. Ao ator e produtor Filipe Crawford, por exemplo, foi-lhe exigida tal contrapartida em troca de 154,69 euros de apoio mensal. A vereadora da cultura da CML, Catarina Vaz Pinto, comunicou que a câmara decidiu revogar esta norma, mas aproveitou para insistir que isto não configura uma “prestação de serviços” mas antes uma “contrapartida do apoio concedido”. Descubra as diferenças.

A ideia de que os pobres são “diferentes” reconfortou as elites ao longo da história na sua inação para erradicar a pobreza. As “workhouses” da Inglaterra vitoriana eram instituições assistencialistas e moralizadoras, que alimentavam – mal e pouco – as pessoas pobres e procuravam corrigir os seus supostos maus hábitos. Durante o fim de semana, Marcelo Rebelo de Sousa visitou a sede do Banco Alimentar contra a Fome e apelou aos donativos de comida, alegando que há 400 mil pessoas com fome, mais cerca de 20 mil do que as habituais 380 mil servidas habitualmente pelas instituições de solidariedade apoiadas pelo Banco Alimentar. Segundo o Presidente, “não é preciso gostar do Banco Alimentar, da líder ou dos voluntários. É preciso pensar nos que estão mal e que vão estar assim mais um mês, dois, três, mais um ano, o tempo que durar a crise”.

A mim, parece-me que é preciso pensar que espécie de sociedade é esta que perante pessoas que podem ficar com fome durante mais de um ano se contenta com oferecer uns pacotes de arroz para as campanhas do Banco Alimentar. Este cheirinho feudal dá-me náuseas.»

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1 comments:

Luísa Ramos de Carvalho disse...

Olá Susana. Não pertenço ao Banco Alimentar mas sou daquelas que pratica a caridade. A caridade é um movimento de empatia para com o outro, muitas vezes nosso desconhecido mas que está no nosso espaço social próximo, que podemos ir ter fisicamente com ele e fazer uma diferença, a diferença que nos é possível fazer naquele instante, no presente, na vida real. Pode ser um pacote de arroz ou uma lata de feijão que por sinal ninguém cá em casa gostava mas que comprei e foi ficando no fundo da despensa. Não sei muito academicamente sobre pobreza e acho que não sou boa a pensar a nível macro mas tenho a ideia que um pacote de arroz para mim que gasto várias centenas de euros mensalmente no supermercado para uma agregado familiar de 3 pessoas (dois adultos e uma criança) não faz de facto muito diferença e tenho arroz de vários tipos na já referida despensa mas o mesmo pacote para quem eu o levo faz muita diferença. São os testemunhos que vou testemunhando, os sorrisos que vou observando e a minha insatisfação e inquietação vem da certeza que a sociedade civil poderia ter um papel tão mais relevante neste campo do que aquele que tem se houvesse mais canais a canalizar a bolsa de bondade e vontade de exercer a genuína caridade próxima de amor que existe nela. De todos os momentos em que partilhei os pacotes de arroz aqui d casa com quem não os tinha ficou-me uma observação de uma pessoa, um homem adulto que vivia sozinho que me disse como resposta ao meu pedido de desculpa de não ter trazido também uma lata de atum ou algo para fazer com o arroz com um sorriso " ... sem preocupação eu tenho canela, aqueles paus de canela que às vezes estão nos cafés e faço arroz de canela ou arranjo outras especiarias" É isso! Valorizo muito o pacote de arroz sabendo que não é solução e expressando no meu voto em TODOS os momentos eleitorais as minhas escolhas reflexo de quem avalio que terá capacidade para construir as soluções estruturais que é preciso construir.