5.9.07

«Le Plat Pays»

Biblioteca da Universidade de Lovaina (Leuven)

A Bélgica está sem governo há cerca de três meses e mantêm-se as dificuldades para formar o próximo. Uma vez mais, é a questão linguística que está no centro dos problemas. Fala-se, como sempre, da hipótese de desmembramento do país, mas as sondagens indicam que a maioria dos belgas não o deseja.

Não vou entrar em pormenores sobre esta crise porque a informação está disponível, mas Le Plat Pays de Jacques Brel, geralmente considerado pouco interessante, é para mim uma referência importante. Andei por lá quase nove anos (e muitas outras curtas estadias), em duas fases – uma como estudante, outra a trabalhar na IBM. Na primeira, que teve início em 1957 (há 50 anos?...), vivi por dentro este verdadeiro drama linguístico dos belgas.

A universidade onde estudei – Lovaina – fica na parte flamenga, mas era então bilingue, como tudo no país. Era uma cidade excepcionalmente cosmopolita, com estudantes de mais de sessenta países (tentem imaginar o que isso significou para mim, ida do Portugal salazarento). Como é óbvio, quase todos os estrangeiros frequentavam as aulas em francês (a excepção sendo apenas os indonésios e um ou outro holandês).

De ano para ano, foram crescendo as hostilidades por parte dos flamengos contra o uso do francês: nomes de ruas arrancadas, montras partidas, uma monumental manifestação, à pedrada, contra Jacques Brel que insistiu em cantar Les Flamandes no cine-teatro de Lovaina, num espectáculo a que assisti (com letra bem pouca simpática para as ditas, há que reconhecê-lo) (*).


Em 1962 foi fixada a fronteira linguística, mas a crise agudizou-se sobretudo na segunda metade da década de 60. A páginas tantas, os professores deixaram de poder dar aulas nas duas línguas, mas as instalações, as bibliotecas e tudo o resto era partilhado. Depois de manifestações gigantescas em 1967, por todo o país, foi decidido, em 1968, que a parte francófona saísse de Lovaina (Leuven) e se instalasse a menos de 30 km. Nasceria assim, do nada, uma nova cidade e uma nova universidade, Louvain-la-Neuve, que começou a funcionar em 1972. (É mais ou menos como se, por um qualquer motivo regionalista, a Universidade de Coimbra fosse obrigada a «duplicar-se» na Anadia...)

Custos? Desperdícios? Incalculáveis. Um único e grande exemplo. O conteúdo da magnífica Biblioteca da Universidade, onde passei anos da minha juventude, teve de ser dividida ao meio. Embora parcialmente destruída durante as duas Grandes Guerras, o seu espólio tinha um valor inestimável e foram longamente discutidos, durante anos, os critérios a adoptar para a distribuição de livros e documentos. O mesmo aconteceu com as bibliotecas das faculdades, laboratórios, hospital universitário, etc., etc.

(O meu cartão de acesso à Biblioteca)


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Uma última observação neste texto que já vai demasiadamente longo. Por ironia do destino, é neste pequeno país que não consegue governar-se unido que a está a sede da... União Europeia. Nos meus momentos pessimistas sobre o que o futuro nos reserva – e não são poucos –, penso sempre nisto.

(*) Vídeo aqui no fim deste post.

Les Flamandes (Jacques Brel, 1959)

5 comments:

Anónimo disse...

Estou em crer que o tribalismo e os seus males - sempre invocados pelos sociólogos, quando se fala de África - afinal também foram para aqui trazidos pelos europeus.

F. Penim Redondo disse...

É reconfortante ver que há quem seja mais irracional do que nós.

Sempre achei que os portugueses se podiam orgulhar de um país onde as diferenças culturais são geridas com sabedoria. Em vez disso autoflagelamo-nos...

Nesse aspecto é caso para desejar, parafraseando Chico Buarque,que a Europa se torne "num enorme Portugal".

Joana Lopes disse...

Todo este «drama» belga cheira a tribal, como diz o Nelson, e é irracional, como sublinha o Fernando.
E o Darfur aqui tão perto...

Cláudia [ACV] disse...

Joana,
já me tinham dito que a questão era epidérmica, mas só ganhei noção da sua dimensão aqui há dois anos, de visita a um familiar que vive no país. Decidimos (naquele que viria a revelar-se o mais quente dia de Novembro de que os belgas têm registo) apanhar o comboio até Ostende, aproveitar os ares da costa. De regresso, porque os inter-cidades não têm (ou pelo menos não tinham) lotação limitada, como os nossos, as carrugens vinham à pinha; num ambiente já de si claustrofóbico e tenso, uma outra composição atravancou a linha devido a um incêndio. Ao fim dos primeiros cinco minutos de uma inesquecível hora de espera, alguém dirigiu a palavra a alguém em francês, que respondeu rudemente em flamengo, que despoletou a intervenção de terceiros em francês e flamengo, gerando um dominó prestes a vias de facto, que só meia dúzia de estrangeiros entre os quais me contava pareceu estranhar.
Visitante incauto de qualquer canto do mundo que tente falar em francês na zona flamenga recebe, no mínimo, antipatia. Da sua perspectiva, tem havido uma escalada de atrito, ou sempre foi mais ou menos assim?

Fiquei bastante impressionada com esta bizarria, num país que todos os anos recebe a enorme quantidade de turistas, estudantes e profissionais que recebe.

Bom domingo,
acv

Joana Lopes disse...

Ana Cláudia,
Sempre foi mais ou menos assim.
Mas o problema está dos dois lados, porque se alguém tentar falar flamengo na Valónia,toda a gente faz gala em não perceber (mesmo aprendendo o flamengo como segunda língua, julgo que desde a primária). Aquilo não tem remédio.