8.10.07

Comandante Che Gevara (2)

Depois das considerações sobre a capa da Atlântico, um brevíssimo comentário ao artigo de Rui Ramos (RR) «O desprezo de Che Guevara» e algumas considerações de ordem pessoal.

Globalmente, acho absolutamente inadmissível que sejam postos no mesmo plano as acções e os efeitos das mesmas, nos casos de Hitler e de Che Guevara (CG). Adiante: já muitos disseram porquê.

Mais concretamente e para focar apenas um aspecto. Diz RR a páginas tantas:
«Convém recordar a época. Depois de 1956, do XX Congresso do PCUS e da invasão da Hungria, ninguém que quisesse ser levado a sério entre os intelectuais ocidentais podia entusiasmar-se com a URSS, como acontecera no tempo de Estaline. A revolução cubana mudou tudo isto.»
De acordo: nada voltou a ser como antes. Mas é precisamente esta realidade e a sua contextualização que RR perde de vista no artigo. Viveu-se uma verdadeira «revolução cultural» (não a de Mao, mas uma outra, bem ocidental, predominantemente latina) que veio para ficar, apesar de todos os erros e de todos os fracassos. Não vale a pena tentar riscá-la da História.

Não me alongo na análise do artigo. Ele está cheio de sound bytes, mais ou menos bombásticos, que combinam bem com a capa. Por exemplo: RR defende que Cuba não era e se tornou um país pobre porque «o papel de Guevara, no seu novo país, foi o de Mugabe no Zimbabué».


Passo agora para um plano pessoal.
Quando Fidel tomou o poder, em Janeiro de 1959, eu estava a estudar na Bélgica. Num país sem censura, segui os acontecimentos mais pormenorizadamente do que poderia tê-lo feito em Portugal. Lovaina estava longe de ter um ambiente esquerdizante, mas o que é certo que os acontecimentos na América Latina foram seguidos com grande interesse e entusiasmo, numa população estudantil especialmente cosmopolita. Faziam parte do grupo dos meus amigos mais próximos alguns dos muitos húngaros que tinham fugido do seu país e pedido asilo político depois dos acontecimentos de 1956 e que alimentaram, entusiasticamente, a esperança de que, em Cuba, iria nascer um «mundo novo», diferente daquele de que tinham sido vítimas.
Estavam também iminentes a independência do Congo Belga e do Ruanda (que vieram a acontecer em 1960), muitos dos futuros ministros estudavam então em Lovaina e conheci-os pessoalmente, com todas as suas expectativas e limitações.
Em Roma, João XXIII, recentemente eleito, convocou o Concílio Vaticano II em 25 de Janeiro de 1959.

América Latina, África e a Igreja Católica pareciam então encaminhar-nos para amanhãs em que seria possível cantar. Infelizmente, o canto foi muitas vezes de cisnes.

Em Portugal, vivia-se no triste rescaldo das eleições em que Humberto Delgado concorreu à Presidência da República, com todas as desilusões para quem tinha acreditado no fim da ditadura.

Os anos foram passando, regressei a Lisboa e quando Che Guevara morreu, em 1967, ele e outros (Camilo Torres, por exemplo) povoavam o imaginário de muita gente. Juntavam-se a muitos outros factores, como as (últimas) esperanças quanto aos efeitos do Concílio, as mensagens dos movimentos hippies, a música (nomeadamente dos Beatles) e viriam a desaguar no nosso entusiasmo com o Maio de 68 em França. Não haveria ainda T-shirts, mas andavam por aí alguns toscos posters.
Influenciaram, sem qualquer espécie de dúvida, muitas das acções de resistência ao fascismo – por exemplo, nas hostes dos chamados «católicos progressistas», nas quais então me movia.

Os ecos perduraram até hoje, no consumismo que entretanto invadiu tudo, com Che perpetuado em ícone, como tem sido exaustivamente descrito. Che e tudo o resto – «Jesus Cristo, superstar»

Mas não são só ecos. Em viagem recente à Namíbia, tive como guia do grupo em que ia integrada um angolano que, tendo ficado órfão em criança durante a guerra civil, foi levado para Havana por soldados cubanos. Por lá estudou até ao fim do secundário, regressou a África há alguns anos e foi parar à Namíbia. Ainda enverga quase todos os dias T-shirts cubanas, algumas com o Che. Interpelado por nós quanto à situação política e à falta de liberdade em Cuba, sorria, encolhia os ombros e dizia: «Foram eles que me salvaram».

Avaliza isto, de algum modo, o regime de Fidel de Castro, o que se passou e passa, as prisões, a corrupção e a prostituição para que são empurradas as populações e tudo o resto? De todo.

Mas não houve só branco ou preto – houve também muitos tons de cinzento, de verde esperança e um pouco de todas as outras cores.

10 comments:

Anónimo disse...

Não conheço a tal de “Atlântico” mas creio que o aspecto fundamental da questão não se esgota na capa da dita cuja.

Julgo perceber que, a preocupação com a permanência de um certo legado e de uma certa memória de Marx, que persiste em se manter perigosamente descomprometida com a história do tal “socialismo real”, continua a incomodar e tem vindo a dar origem a uma onda com várias cristas, onde se alinha uma vasta frente de “surfistas”, que vai desde a direita convencional a dissidentes da velha militância comunista, entretanto convertidos no seu contrário.

E que, à semelhança da chuva – que quando cai no tempo e medida certos fertiliza os campos, mas que quando assim não é causa prejuízos – ao trabalho virtuoso que foi a denúncia de Estaline, da realidade da sociedade soviética, e de tudo o que sobre a matéria já foi dito, parece agora suceder-se o que seria afinal o objectivo estratégico da tal vaga: a morte e o enterro definitivos de Marx. De preferência sem direito a lápide e em vala comum, para que seja esquecido depressa.

Ora, eu que sempre recusei o totalitarismo dos que afirmavam que Marx – ou Cristo, ou Alá, ou qualquer outro – eram a verdade absoluta, rejeito igualmente o totalitarismo dos que afirmam que Marx – ou Cristo, ou Alá, ou qualquer outro – estão totalmente errados e não explicam coisa alguma. E, da mesma forma que, não sendo cristão – pelo menos em sentido religioso – me recuso contudo a ver em Cristo o primeiro responsável pela inquisição, não sendo marxista – pelo menos no sentido que o termo normalmente toma – recuso-me igualmente a ver em Marx o responsável pelo tal “socialismo real” e por tudo o mais a que o pretendem associar.

George Steiner, numa perspectiva secular da tradição judaico-cristã, referiu Marx como a expressão do cristianismo impaciente: os que desesperam pelo tardar do cumprimento da promessa messiânica da terra prometida. Creio que Che Guevara terá sido o exemplo superior deste sentimento.

Obviamente que respeito a memória d'el Comandante. Mesmo sabendo que cometeu erros.

(Peço desculpa pelo excessivo espaço que ocupei)

Anónimo disse...

Correção: onde se lê Alá leia-se Maomé.

Joana Lopes disse...

Obrigada pelo seu comentário.Os ânimos andam hoje muito agitados quanto a CG, na blogosfera, televisões e jornais.

VFS disse...

Cara Joana, através do Água Lisa desemboco neste seu blogue, identificando-a, sem dificuldade, já que, ainda em Portugal, li alguns textos sobre o seu recente livro. Antes de mais, congratulo-a.
Se a capa da revista Atlântico fez crepitar as opiniões, em Portugal, a Veja, revista brasileira, causou alguma efervescência, devido a um artigo sobre Che que desmembrava o mito de herói romântico e magnânimo, convertendo-o num torcionário cuja vida dependia da morte. O artigo é sólido e assenta em testemunhos de companheiros de Che. Jovens do PC brasileiro realizaram manifestações à frente do edifício da revista, queimando exemplares e exigindo um pedido de desculpas pelas "mentiras" veiculadas.

Che e a odisseia da Sierra Maestra modelaram o meu imaginário romântico. Também não sou um prosélito arrependido, porque nunca gostei de deificar homens. Concordo com a importância de Che, como catalisador da luta antifascista, mas tenho grandes dificuldades para compreender aqueles que, hoje, ainda entronizam Che, sonegando realidades ominosas. Além da tomada de poder em Cuba, Che foi um eterno perdedor. Perdeu no Congo, perdeu na Bolívia, denunciado por camponeses. Apesar de tudo, como dizia um analista a uma revista brasileira, "Che iria gostar de viver na América Latina, hoje".

Sou de esquerda, mas intriga-me esta complacência com que o Mundo olha para os crimes cometidos pelos arautos do Homem Novo...

Joana Lopes disse...

Obrigada, Vítor pelo seu comentário.
O que foi publicado na «Veja» foi bastante divulgado por cá.
Eu concordo com tudo o que diz. Mas acho que não se pode/não se deve apagar o tal papel catalizador para lutas importantes que certas figuras tiveram, APESAR do que veio a acontecer e a saber-se mais tarde.

Dei uma olhadela ao seu blogue. Vou por lá passar de vez em quando.

VFS disse...

Cara Joana, a minha gratidão pela sua resposta e pela honra com que me contempla, ao visitar o me blogue. Em relação à necessidade de não sonegar o estatuto de "catalisador" de lutas, rupturas e eras, estamos de acordo. Porém, a probidade intelectual também nos obriga - a nós, especialmente, "homens de esquerda" - a reconhecer que muitos dos líderes históricos de "esquerda" fruem de uma intrigante complacência, ao contrário do que sucede com os seus congéneres sanguinários de "direita", esconjurados sem rversibildiade.
No livro "Gulag, Uma História", Anne Appleubam, com especial acutilância, a episódios reincidentes no mundo outrora dominado pela URSS. Na Ponte D. Carlos, por exemplo, todos os dias turistas posam para as fotos com efígies de Estaline, sorrindo. Poucos, creio, teriam a coragem e impudência para se exibirem com símbolos nazis... Muitos intelectuais, nomeadamente de esquerda, continuam a acreditar na benignidade intrínseca do Comunismo. Não divisam nele o germe do mal. Antes definem-no como um "bem deformado", o que constitui uma notável e arguta desculpabilização do regime mais carniceiro da História. A direita e a esquerda, contudo, não hesitam em subscrever as palavras de Arendt, quando a filósofa definiu o nazismo como "O mal absoluto". A revolução bolchevique também foi o pórtico de um Admirável Mundo Novo, mas não tardou em devorar os seus filhos, além de votar ao ostracismo os selvagens recalcitrantes. Sem rodeios, cuspo tanto em Hitler como em Estaline. Em Fidel também. Perguntar-me-á se faria o mesmo com Che. Não sei. Cuspir em Che é amputar parte de uma mundividência. Sartre, até ao fim, negou os crimes da URSS. Mas recuso-me a ser genialmente sesgo como Sartre. E não beijo Che, nem o apelido de Cristo Guerrilheiro. Pessoa diria que "o mito é o nada que é tudo." Gostaria de me manter fiel ao mito de Che. Mas isso é nada. Para outras gerações, foi tudo.

Anónimo disse...

Que respiração esta a do Nelson Anjos, avança arrepia caminho, torna avançar , a citar, demarcar-se, apresenta-se, virgula-se, corrige-se , sinceramente gostei de ler mas não poderia ouvir!
booa.aanoi oite!

Anónimo disse...

santo deus agora apanho com todo o carinho o Victor de Sousa ! vou-me embora ou fico!
Sou um intlectuel fatigué, ou peut-être caviar! voilà!
Booaa-nooittee!

Anónimo disse...

Vá lá meu caro anónimo ... tenha mais um pouco de paciência para mais uma citaçãozinha. (Esta é de um francês, para afagar o seu requintado ego)

Em 1934 (Le nouvel esprit scientifique) já Gaston Bachelard tinha concluído os limites da linearidade euclidiana e também que a ambiguidade não está na teoria: está no real.

E esta heim!? ...

Anónimo disse...

Merci en avance!
Esteja onde estiver essa sua amiga
a teoria e o seu amigo Gaston Bachelard dê-lhe cumprimentos meus, a ambos é claro. Não os vejo desde os anos setenta e tenho saudades das psicanálises deles: da água, do fogo, rio, enfim de tudo o que elementar!
Não se esqueça eu aprecio a desova!!
cordialmente