A discussão começou ontem nos comentários a um post que eu julgava inócuo e que deram origem a um texto do Miguel Serras Pereira e a um outro do João Tunes. Tomo-os como ponto de partida, concordando com muito do que ambos dizem, mas tentando abordar a questão de um outro ponto de vista e deixando de lado, pelo menos para já, a questão da pedofilia e de tudo o que lhe está ligado.
Será razoável esperar que a igreja católica enquanto instituição venha a prescindir do poder fortemente centralizado que detém, ou a modificar significativamente as suas características, apesar das declarações cíclicas de descentralização e de autonomias que vai fazendo? Terá isso importância, ou não, na sua contribuição para a construção da democracia dos povos?
A minha resposta à primeira pergunta é negativa e recuo algumas décadas para lá chegar. Durante o Concílio Vaticano II que decorreu na primeira parte dos anos 60, mais exactamente de 1962 a 1965, a grande esperança que alimentou o mundo católico foi precisamente que se estivesse a viver o início de uma nova era em que a primazia do «povo de Deus» vencesse a rigidez de uma estrutura hierárquica, rígida e esclerosada, onde tudo chegava do topo à base em perfeita harmonia, por uma correia de transmissão sem falhas nem desobediências. Ou, por outras palavras em que melhor nos entendemos, para a que a igreja se tornasse uma instituição verdadeiramente «democrática».
Com a ajuda das características pessoais de João23, e com as pressões de teólogos altamente qualificados, quase tudo foi posto em causa e, a páginas tantas, era de crer que não ficaria pedra sobre pedra: desde dogmas nunca postos em causa a modos de actuação com séculos de existência. Esses teólogos (entre os quais Ratzinger…) agruparam-se numa revista internacional de teologia – a Concilium – cuja versão portuguesa foi editada pela Moraes e que teve um papel decisivo, primeiro para a dita esperança e bem depressa para a grande desilusão de muitos que rapidamente bateram com a porta (entre os quais eu). À revista, estava ligada a organização de colóquios e debates e por cá passaram muitos desses eminentes teólogos: dessa vez, apanhámos a primeira carruagem do comboio - com total adversidade de Cerejeira e amigos, como é óbvio, e com a PIDE sempre à espreita.
Em 1966, João Bénard da Costa escreveu um texto que, durante muito tempo, foi uma referência do que acabo de dizer, reflectindo ainda a fase da esperança mas já com uma grande carga de dúvidas: «A Igreja e o fim dos constantinismos». Foi publicado em O Tempo e o Modo (nº 37, Abril de 1966), embora tenha sido preparado precisamente para uma das sessões ligadas à revista Concilium. Coloquei-o hoje online para os mais curiosos. Nele é citado Hans Küng – o mesmo que agora ainda se pronuncia sobre os escândalos da pedofilia -, precisamente a propósito dessa era pós-conciliar: «Será a realização de uma grande esperança ou será uma grande decepção. A realização duma pequena esperança – dada a gravidade da situação mundial e as necessidades da cristandade – seria uma decepção». E foi. Total ou quase total.
Recorro a estes relatos em versão caseira porque, para mim, é desde então absolutamente claro o que em tempos resumi simplisticamente assim: «Com a distância que o tempo cria, parece hoje evidente que o Concílio não desiludiu por acaso ou por engano. O que se passou foi que a Igreja, ao mais alto nível, recuou, num sábio exercício de sobrevivência. A pesada pirâmide sobreviveu a um terramoto – abanou, mas não ruiu. A grande diferença em relação ao que se passou muito mais tarde numa outra pirâmide, a da União Soviética, foi que a Igreja resistiu quando percebeu que estava ameaçada. Durante o Concílio, também ela arriscou uma glasnost, uma abertura à sua maneira. Iniciou então um tímido aggiornamento, mas travou-o a tempo de não deixar que ele se transformasse em perestroika. Por isso se deu a debandada de muitos, com maiores ou menores angústias existenciais. A estrutura não cedeu – cederam eles.»
Ratzinger foi um dos que mais rapidamente percebeu tudo isto e que tomou em mão, com outros, as rédeas do recuo. Talvez para evitar uma implosão. E assim chegou a papa.
É à luz do que acabo de resumir que vejo sempre a realidade presente: a pompa do Vaticano, as viagens dos papas, o regresso parcial ao latim, a «reconciliação» com os herdeiros do Marcel Lefebvre, a intransigência e a sobranceria moralista em termos de costumes e, agora, o que se sabe sobe o encobrimento dos crimes de pedofilia durante décadas. Nada é por acaso, tudo faz sentido. A estrutura hierárquica desenha e defende uma estratégia rígida, mesmo que disfarçada, que é condição de sobrevivência e de conservação do poder. Percebeu-o há quarenta anos e não vai ceder.
Os escândalos recentemente conhecidos são apenas epifenómenos. Mas tão importantes, porque de tal maneira chocantes, que devemos não só denunciá-los com toda a veemência como explicar todos os contextos acima enunciados, que os tornaram e tornam possíveis.
Quanto à democracia, ela será construída e a humanidade progredirá apesar do Vaticano. Mas não deve, de modo algum, contar-se com o seu contributo positivo. Muito pelo contrário.
P.S. - Excepcionalmente, os comentários a este post estão fechados por uma razão muito simples: ele foi também publicado no Vias de Facto e parece-me mais conveniente centralizar o possível debate num único local.