Descoberto no fundo de um baú, este excerto de uma redacção da Guidinha, de Luís Sttau Monteiro. Escrita há 40 anos?
«(...) Isto aqui na Graça em matéria de fé está uma desgraça é que está mesmo uma desgraça porque ninguém acredita em nada mais dia menos dia o meu Bairro passa a chamar-se Desgraça não sei o que aconteceu às pessoas mas a verdade é que a gente dá-lhes uma notícia boa e elas sorriem com o ar triste de quem não acredita no que está a ouvir o que é engraçado é que se a gente lhes der uma notícia má acreditam logo veio cá um senhor dizer que isto ia de bem para melhor e que para o ano ainda ia estar melhor e toda a gente ouviu e mudou de conversa é que não sei o que aconteceu à gente cá da Graça mas a verdade é que isto é assim mesmo já ninguém acredita em nada e toda a gente anda triste triste triste triste tão triste que a minha Graça está cada vez mais parecida com o cemitério dos Prazeres em dia de Finados eu até vou mais longe: a minha Graça está a transformar-se num Cabo da Roca gigantesco cheio de gente que não acredita em nada nem mesmo nas virtudes da meditação o perigo é se o cabo não aguenta com o peso e damos todos com os focinhos na água mas enfim como somos todos filhos de navegadores ainda nos podíamos safar mas é que já nem acreditamos em que sabemos nadar sim já não acreditam isto vai cada vez pior e de qualquer forma esta minha ordem é estúpida sim porque a gente aqui na Graça tem lá dinheiro para ir meditar para o Cabo da Roca não era para lá que ia não senhor a não ser talvez em vacances quando viesse do sítio para onde ia se tivesse dinheiro para ir a qualquer sítio e isso o que é triste é que nem sequer já temos dinheiro para irmos ao Cabo da Roca ou até outro cabo qualquer meditar no dinheiro que não temos.»
Em A Mosca, 27 de Outubro de 1973
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1 comments:
lê-se sempre com um prazer imenso.
Luis Reis
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