27.7.19

A Europa nunca foi fascista



«Quanto mais migrantes vierem, mais diluídos serão os nossos valores cristãos", afirmou o bispo de Szged, uma cidade no sul da Hungria. O bispo falava também em nome do seu primeiro-ministro, Viktor Orbán, mentor de várias medidas antidemocráticas, contra a imprensa, os juízes ou a universidade. Ideia semelhante foi lançada em Portugal, há uns dias. Como chegámos aqui? O que nos tem trazido de um mundo liberal, de reforço democrático, desde a queda das ditaduras do sul e do Muro de Berlim, a um mundo em que o discurso do mal se banaliza? Em vez de respondermos diretamente a estas perguntas e assim ceder à agenda política de quem as causa, recordemos do que falamos quando falamos da Europa. O resultado, como veremos, é altamente positivo. A Europa nunca teve donos e não será desta que os terá. A Europa é de quem nela vive e ninguém tem o poder de decidir quem tem esse direito. Procuremos ver o todo através de algumas partes.

Corria o ano de 711 quando uma estirpe de seguidores de Maomé, vindos de onde hoje é a Síria, aportou às costas da Península Ibérica, onde, organizados politicamente, ficaram durante mais de quatro séculos; e para sempre no sangue, na cultura, na ciência ou na tecnologia. Ficaram simplesmente porque trouxeram coisas novas que a todos beneficiou e porque assim funcionava o mundo. Esta troca não foi apanágio do sul, pois a Europa cruzou influências com o exterior em todos os quadrantes. Os reinos árabes peninsulares seriam derrotados por reinos cristãos. Seguiram-se séculos de afirmação dos poderes centrais - e isso em toda a Europa. Todavia, a religião que serviu como distinção perante o exterior cedo se transformou na base da guerra dentro de fronteiras. Desses confrontos religiosos resultaram reinos ou impérios cada vez mais fortes, divididos pelas diferentes faces do cristianismo. A leste manteve-se o espectro da fronteira muçulmana.

Este quadro, naturalmente incompleto e frágil, define apenas a grande organização política. Se o seguíssemos acriticamente, veríamos a ele associados o nascimento dos Estados-nação, o advento dos impérios autoritários, assim como dos Estados fascistas e do estalinismo. Mas temos de olhar para além disso, temos de olhar para a Europa dos indivíduos e dos povos, que foi crescendo sob essa ordem superior.

A revolução comercial medieval, dentro e depois fora das fronteiras do continente, trouxe novas formas de poder político, que viriam a traduzir-se nos Estados livres e abertos do nordeste europeu. As revoluções do conhecimento e científica que se seguiram, as ideias do iluminismo, acabariam por libertar uma das maiores nações europeias, a França, numa revolução que viria a deixar um importante legado nos Estados alemães ocidentais, e nas penínsulas ibérica e italiana. Não foi um movimento de um só sentido, mas sim de avanços e recuos. Todavia, se escolhermos um qualquer ponto de um qualquer século da história europeia, somos obrigados a fazer um balanço positivo dos avanços da força dessa Europa dos povos.

O predomínio da vontade dos muitos sobre os poucos é uma das características mais importantes da história da Europa e essa persistência faz-nos pensar que assim continuará. Mas é preciso estarmos atentos às tentativas de contrariar esse domínio e isso deve ser feito de forma estruturada, institucional, e não casuística e individual. O domínio dos povos depende da força de organização dos povos. A invenção da democracia universal, em que todos votam, é o melhor exemplo disso.

As palavras do bispo e do primeiro-ministro húngaro estão a ser replicadas em outros países europeus. Precisamos de estar atentos e de estudar e recordar o que a Europa significa. É um erro cair na ratoeira de se discutir estes temas com base na retórica nacionalista ou racista. É preciso contrapor ideias sobre o que é a Europa, ideais da respetiva história.

E há vantagens neste jogo. Os nacionalistas e racistas não conseguem unir-se para além das fronteiras, porque se rejeitam entre si. Quem apela ao "cristianismo" na Hungria olha com superioridade a quem faz o mesmo apelo em Portugal, país com uma herança considerada demasiadamente pesada dessa mesma Síria de onde vêm os visados dos nacionalistas húngaros. E isso não é uma ironia da história: é a própria história. Ninguém, por muito que tente, consegue subir na escala social através do racismo ou do nacionalismo. A Europa, simplesmente, não funciona assim. Nem o mundo.»

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