«O ‘pós-desenvolvimento’ é uma corrente de pensamento que surgiu nas décadas de 1980 e 1990 e que tem vindo a ganhar influência desde então, criticando a ideia de ‘desenvolvimento’ enquanto ideologia e discurso legitimadores das violências cometidas em nome do progresso: destruição ambiental, mercantilização das relações sociais, homogeneização cultural. A crítica é deliberadamente provocadora e a meu ver excessiva, desvalorizando os ganhos bem reais que a combinação de ganhos de produtividade, reivindicações populares e conquistas democráticas permitiu trazer a muitos povos do mundo: a extensão da longevidade, a redução sem precedentes da mortalidade infantil, a expansão do acesso ao conhecimento, a erosão de relações sociais atávicas que também elas envolviam violência e dominação.
É no entanto um alerta importante no meio da quase unanimidade em torno da ideia de progresso, um grilo da consciência que nos recorda a enorme quantidade de vezes em que o apelo à ideia de desenvolvimento é feito para fechar o debate democrático e não para promovê-lo, para legitimar relações de dominação e para justificar a destruição de habitats e ecossistemas. Se é certo que o crescimento económico moderno permitiu as conquistas e progressos que referi no parágrafo anterior, é igualmente verdade que está indissociavelmente ligado a impactos ambientais com uma escala sem precedentes que constituem hoje uma ameaça existencial para a Humanidade, bem como à subordinação do conjunto das esferas sociais à lógica mercantil.
Tudo isto são problemas e questões frequentemente discutidas no âmbito dos estudos do desenvolvimento com referência a contextos do Sul global, mas que obviamente dizem respeito à generalidade dos contextos. E vêem-me aqui à cabeça a propósito das repetidas ocasiões em que o atual governo tem invocado as ideias de progresso e desenvolvimento para fazer avançar projetos com impactos significativos sobre habitats e comunidades, procurando fechar o debate democrático em vez de abri-lo e procurando impor soluções de forma opaca em vez de sujeitá-las ao escrutínio democrático.
Nas páginas da edição portuguesa do "Le Monde Diplomatique", o especialista em alterações climáticas Luís Fazendeiro tem ao longo dos últimos meses tratado com grande detalhe e rigor várias casos bem conhecidos da opinião pública que exemplificam isto mesmo. Um deles é o caso das dragagens de milhões de metros cúbicos do fundo do estuário do Sado a fim de expandir a capacidade do porto de Setúbal, envolvendo um elevado risco de poluição das águas, das pradarias marinhas e das praias circundantes, que avançou, sem estudos adequados ou consultas públicas verdadeiramente democráticas, a despeito de uma petição assinada por mais de 13 mil cidadãos e de uma recomendação em contrário da Assembleia da República.
Veja-se também o caso da extração de lítio no norte do país, em que a estratégia do governo, legitimada por argumentos em torno da urgência da transição energética, tem envolvido, segundo a Quercus, repetidos desrespeitos pelos instrumentos legais e defesa do ambiente, ocultação de impactos e divulgação de documentos evasivos. Ou o caso do aeroporto do Montijo, em que o governo pretende à força impor uma solução que envolve um impacto significativo sobre populações humanas e ecossistemas protegidos, de forma opaca e autoritária, sem uma fundamentação adequada ou uma avaliação estratégica das diferentes alternativas.
Em vários destes casos, as legítimas preocupações populares e os mecanismos de salvaguarda dos direitos das populações e da preservação dos ecossistemas têm sido encarados como obstáculos incómodos a ultrapassar, saltando-se por cima das instituições e abafando-se o debate democrático. Em Setúbal, as autoridades camarárias, favoráveis ao projeto, terão segundo algumas fontes convocado funcionários camarários para encher o salão onde decorreu a discussão pública do projeto de dragagem, de modo a impedir a presença de outros cidadãos. No caso do aeroporto de Montijo, o governo considera avançar com alterações casuísticas ao diploma legal que impõe a concordância dos municípios envolvidos, apesar deste mecanismo servir precisamente para prevenir impactos locais desproporcionados e obrigar à consideração equilibrada dos interesses daqueles que serão afetados de forma mais significativa.
É certo que nem sempre é fácil alcançar um equilíbrio adequado entre interesses locais, regionais e nacionais e entre a promoção do emprego e da atividade económica e a preservação dos ecossistemas e do bem-estar das populações. Porém, este governo parece deixar-se levar em demasiados casos pela voragem do progresso a todo o custo, mostrando uma tendência sistemática para compactuar com exercícios de supressão do debate democrático e de ultrapassagem dos mecanismos legais e institucionais de controlo. O Ministro do Ambiente, de quem a maioria de nós esperaria que atuasse como provedor dos ecossistemas, da preservação ambiental e da ação climática dentro do executivo, parece estar mais frequentemente do lado oposto da barricada. E tudo isto é feito invocando ideias de progresso, desenvolvimento e interesse nacional que são formuladas de forma muitas vezes parcelar, míope e autoritária. Do governo de um país democrático, especialmente um que se afirma socialista e ambientalmente consciente, exige-se mais humildade democrática e mais disponibilidade para escutar e atender às preocupações de todos.»
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