29.4.20

Vamos conviver com a desigualdade exposta pela covid-19?



«Não estou no grupo dos crentes da transformação da natureza humana com esta pandemia que nos assola. E, no entanto, a verdade é que alguma coisa terá de mudar, nem que seja para ficar mais ou menos na mesma. Porque a covid-19 expos uma desigualdade com que sociedades decentes não devem conviver resignadas. O coronavírus não é um vírus democrata nem igualitário. Explora debilidades físicas crónicas dos infetados, e também explora doenças financeiras pré-existentes.

A covid-19 fez-nos o favor de expor que mata e contagia preferencialmente pessoas pobres. É um novo episódio da velha realidade circular conhecida: a desigualdade impacta para pior a saúde dos que estão na base da pirâmide, e um pior estado de saúde gera menor produtividade e maior desigualdade. É um novo degrau que, para mim, acentua a urgência de se corrigir o cisma social e económico para que os políticos olham risonhos e tranquilos. Se não, talvez não se esperem hordas de bárbaros, mas de certeza movimentos anticapitalistas cada vez mais vocais e ferozes.

O meu coração não pende para ir protestar para as ruas pela abolição do capitalismo, como setores crescentes pedem. Mas tenho noção de que o capitalismo está num ponto desregrado que beneficia muito uns poucos, deixando na mesma uma imensidão de gente. Há um espírito ‘winner takes all’ nos mercados atuais que põe em perigo os próprios mercados. Não tendo um curso superior – um dos grandes diferenciadores culturais e económicos atualmente –, é fácil ficar armadilhado em trabalhos que se tornaram muito mal pagos. E as diferenças de rendimento não se traduzem só em férias glamourosas ou passadas no sofá de casa sem dinheiro para sair, mas também em anos de vida com saúde, e na singela probabilidade de continuar vivo ou não.

A organização dos mercados não é um determinismo divino, resulta de legislação e regulação. A liberalização foi benéfica quando era o estatismo que se tornava um peso-morto. Houve criatividade e inovação, tiraram-se centenas de milhão de pessoas da pobreza com a globalização.

Porém, estamos no lado oposto do pêndulo. E temos de ter noção de que as pessoas não continuarão a viver em condições de mera subsistência para dar avultados ganhos a outros. Ressentimentos destes são matéria de revoluções. Ou contamos que estejam demasiado doentes para se revoltarem?

Vejamos o estado da arte exposto pela covid-19. Nos países onde os dados são fornecidos desagregados, como os Estados Unidos, vê-se que o coronavírus proporcionalmente contagia mais e mata mais nas minorias negra e latina e nos códigos postais onde vive maior percentagem de pobres. Em Nova Iorque, a taxa de mortos negros e latinos é o dobro da de brancos e asiáticos. Em Los Angeles, os infetados por covid-19 residentes em zonas pobres têm uma probabilidade de morrer que é três vezes a das zonas sem pobreza.

Pobres, para começar, têm menor acesso a cuidados de saúde, hábitos alimentares e de vida menos saudáveis. Maior probabilidade de sofrer doenças crónicas e mais cedo. Nos Estados Unidos, sabemos bem, os cuidados de saúde são próprios de uma distopia. Em Portugal e na Europa temos sistemas de saúde mais compassivos, mas ainda assim se notam diferenças conforme o rendimento. Dos dois lados do Atlântico um estudo concluiu, no ano passado, que os ricos tinham expetativa de mais nove anos de vida saudável que os pobres, com dados de EUA e Reino Unido. Naquelas idades de fim de vida quando a covid tem mais impacto, portanto.

Os mais pobres têm mais trabalhos que obriguem à presença no local e ao contacto com grande número de pessoas: fábricas, supermercados, limpezas, transporte e distribuição. O teletrabalho não é um luxo que lhes assiste. Dependem dos transportes públicos, onde há ajuntamentos de pessoas. Vivem em casas mais pequenas – o que não é despiciendo: por cá, 30% dos contágios aconteceram em coabitação. Faz diferença ter casas com várias casas de banho, ou só uma, quartos individuais, espaço para alguém doente estar confinado sem contactar demasiado com os familiares.

Não tenho dados para Portugal – que preferimos nunca saber demasiado para não chocarmos as nossas almas sensíveis. Mas não há razão para escaparmos a esta desigualdade. Desde logo porque reforça algo que já se verificava. O relatório Health At a Glance de 2019 da OCDE mostra que, por cá, mulheres e homens com educação superior vivem mais 2,8 e 5,6 anos, respetivamente, que quem não terminou a educação secundária.

Os lares também nos dão um vislumbre destes números nas vidas reais. 40% dos mortos portugueses por covid são idosos que estão em lares. É a idade, sim. E muitos estão em lares e residências sénior por questões de assistência médica e de cuidados quotidianos, bem tratados. No entanto, permanece a diferença para quem mantém autonomia, está na sua casa ou na de filhos e netos, porventura com ajuda geriátrica paga, resguardado do contágio provável num lar.

Estas linhas são sobretudo de alerta, mas deixo duas sugestões de atuação. A primeira, essencial para os próximos tempos: não encolher prestações sociais para os mais pobres. O stress de viver na pobreza é equivalente a perder 13 pontos no QI, originando más decisões de vida, incluindo quanto a maus hábitos de saúde – e entra-se no círculo viciado. Ter um rendimento assegurado é um alívio que permite respirar – e pensar – melhor. Estar descansado que se consegue alimentar os filhos resulta em menores necessidades de fumar ou de ingerir bebidas alcoólicas. Poder comprar melhores alimentos é mais saudável que ingerir quilos de gomas. As prestações sociais são, entre outras coisas, prevenção de gastos futuros nos sistemas de saúde.

Outra. Atentem à concentração dos ganhos dos novos negócios em muito poucas pessoas. Desde as plataformas digitais que enriquecem multimilionários à conta de conteúdos e trabalhos produzidos por terceiros a quem recompensam nada ou pouco. À Amazon que, em tempos de covid-19, quando o mundo passou a comprar só online e faturou milhões, aumentou nos armazéns o ordenado dos seus mal pagos trabalhadores (mas essenciais para o estado do mundo em 2020) dois dólares por hora – é a loucura. E um quilométrico etc. de exemplos. Está na hora de os países europeus e a União Europeia legislarem uma maior repartição dos ganhos que são produzidos por todos mas agora beneficiam sobretudo só alguns.»

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1 comments:

" R y k @ r d o " disse...

Muita coisa mudou. Muita coisa irá mudar, Nada vai ser com dantes. Uns negócios fecham, outros prosperam. Se calhar tudo se resume a uma questão de inteligência humana. ou seja: " Safe-se quem puder ".
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Felicitações poéticas
Proteja-se