5.7.21

Fartinhos disto tudo

 


«Não devia ter mais de metro e meio a primeira utente que entrou para ser testada na manhã de quarta-feira e que, ao cumprimentar-me com um muito pouco singelo “estou fartinha desta merda toda”, me arrancou do estado de sonolência típico da primeira hora da manhã. Olhei para ela com atenção à procura de uma pista sobre a sua idade, mas a cara miudinha quase totalmente coberta pela máscara cirúrgica não me permitiu chegar a grandes conclusões. E foi aí que olhei para a ficha de inscrição e vi que, na data de nascimento, constava um curioso 29-11-1929, que me indicava que aquela senhora franzina e zangada, sentada na cadeira de testagem, tinha nascido na mesma terça-feira em que se iniciou a Grande Depressão. E se há coisa em que acredito é que a partir dos 90 anos se adquire uma espécie de imunidade diplomática que isenta as pessoas de filtrarem o que dizem para lá de um padrão mínimo.

Dito isto, e enquanto preparava o material para o teste de antigénio, perguntei-lhe de que é que estava farta afinal. E foi aí que ela soltou um suspiro e deixou escapar um “olhe, estou farta de não perceber nada disto e destas regras, pronto”. Nessa altura suspirei eu e tive vontade de lhe responder que o melhor era dar-me a mão porque já éramos duas a sofrer do mesmo mal. Mas em vez disso perguntei se podia ajudar e lá percebi que esta utente era só mais uma no grupo de milhares de portugueses inoculados com uma vacina cujo funcionamento desconhecem e que acreditam piamente ficar imunes à covid-19 após cumprimento de esquema vacinal.

E lá dei o meu melhor para lhe explicar que não é bem assim. Falei-lhe de dados, de estudos, de percentagens e variantes da forma mais acessível que encontrei. Mostrei-lhe um vídeo no YouTube e tudo. Sem paternalismos e sem aquela condescendência que as autoridades de saúde usam para falar à população que, atendendo ao tipo de discurso pelo qual optam, devem acreditar ser constituída essencialmente por oligofrénicos.

Sei que ninguém me pediu opinião, mas acredito piamente que o maior erro português ao nível da gestão da pandemia tem sido o desastre da sua comunicação, que, ano e meio depois do início do pesadelo, continua a ser miserável. Porque não chega que as pessoas saibam o que significa distanciamento físico ou qual a forma correcta de lavar as mãos. Os portugueses precisam de compreender o que motiva as decisões das autoridades de saúde, precisam de ser contextualizados e de uma educação para a saúde mais abrangente, mais estruturada e mais virada para a ciência.

Reparem, não tenho nada contra Graça Freitas, mas acho inaceitável que comunique há tantos meses com os portugueses no mesmo tom que a minha mãe usa para ensinar o meu filho mais velho a atar os sapatos e que se assemelha muito a um “faz lá isto para seres um lindo menino crescido”. E ninguém me tira da cabeça que é esta comunicação errante, paternalista e desestruturada que tem feito engrossar as fileiras do negacionismo e que tem alimentado a retórica de quem não consegue deixar de achar que o seu umbigo é o centro do mundo.

Sei zero sobre comunicação profissional, entenda-se. Mas há mais de 11 anos que faço diariamente educação para a saúde e posso assegurar que a maioria das pessoas entende bastante bem o que lhe explicamos desde que tenhamos o cuidado de utilizar uma linguagem adaptada. É evidente que não vou perder tempo a explicar a um utente analfabeto de 90 anos o que significam ARN mensageiro ou vector viral. Mas garanto que é possível explicar-lhe o funcionamento da vacina, o que pode esperar após completar o esquema vacinal e o que sabemos até agora sobre cada uma das vacinas e a sua eficácia contra as diferentes variantes do vírus. O problema é que este devia ser um trabalho feito em massa pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) e pela sua comunicação porque, do lado dos profissionais que neste momento estão forçados a vacinar a um ritmo alucinante, não há qualquer hipótese de fazer ensinos tão estruturados de forma individualizada.

E depois instalou-se esta sensação de descoordenação e de navegação à vista que só retira força às autoridades de saúde. Com a história das compotas do Natal e de mais umas quantas mensagens inadequadas, a DGS e a sua comunicação transformaram-se mais em material para memes do que propriamente numa autoridade respeitada por todos.

E deixem-me dizer que acredito que, se queremos que as coisas sejam diferentes nesta nova “onda” e que o rato abandone a roda ainda antes de ela começar a girar de forma descontrolada, então a comunicação vai mesmo ter de mudar. Porque já não é só a minha primeira utente da manhã que está furiosa por “não perceber nada disto”. São milhares e milhares de portugueses.

Uma boa aposta seria que nos canais generalistas de televisão, nos programas da manhã e da tarde onde falam a toda a hora os senhores do Calcitrim e dos seguros de saúde, fosse colocado um representante da DGS a responder a questões sobre a pandemia. E comprar tempo publicitário em horário nobre para passar vídeos que explicassem as diferenças entre as variantes mais prevalentes no país, a vacinação e as restrições a que os portugueses estão sujeitos. Aliás, temos um canal público de televisão, não temos? Então que tal usá-lo para educar para a saúde e para a ciência? É que assim, lamento, mas não vamos lá.

De verdade que raros são os dias em que não tenho de aconselhar alguém a não fazer teste tão cedo. Diariamente chegam ao centro de testagem dezenas de pessoas que tiveram contacto de risco com um positivo há menos de 12/24 horas e que insistem em testar-se “quanto mais cedo melhor”. Todos os dias tenho de explicar a alguém que mesmo vacinado pode contrair o vírus e que, por isso, tem sim de ser testado se tiver estado exposto a um contacto de alto risco. Todos os dias tenho de explicar o que é isto da variante Delta e porque temos de nos preocupar com ela. E a DGS tem de ajudar neste trabalho. Trabalho esse que não se pode limitar a sites muito bem organizados por separadores. Até porque ainda há uma parte importante do país que não vai à Internet e que percebe melhor o Fernando Mendes do Preço Certo do que a Dra. Graça Freitas.

Os últimos dias têm sido novamente mais trabalhosos e começa a ouvir-se o sussurro de que, a continuar assim, muitos profissionais de saúde vão ter as férias em risco. Por aqui notamos um aumento na testagem e no número de positivos sem, felizmente, ainda se sentir um aumento de carga para o SNS. Mas era importante que a DGS falasse agora. Era importante que se investisse a sério nesta comunicação e que, finalmente, se deixassem cair os paternalismos e o medo de assumir as falhas.

Porque no fundo, tal como a senhora pequena e franzina que nasceu na terça-feira negra, estamos todos, mas mesmo todos, muito “fartinhos desta merda”. E para algumas pessoas a tentação de acreditar no discurso que mais lhes convém começa a ser demasiado forte para resistir.»

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