6.6.22

A existência da Ucrânia não é negociável

 


«Após cem dias desde o início da agressão, não provocada, da Rússia à Ucrânia, a ONU calcula que pelo menos 4000 civis tenham sido mortos. O número real será, sem dúvida, muito superior. Um relatório publicado na sexta-feira por uma equipa de peritos jurídicos independentes conclui que as atrocidades cometidas pela Rússia na Ucrânia equivalem a um genocídio. Contudo, há uma escola de pensamento no Ocidente, cada vez maior, a defender que as vítimas devem negociar com os seus assassinos e aceitar mais derramamento de sangue e ocupação a fim de oferecer a Putin uma “estratégia de saída”. Trata-se de uma ilusão tão ofensiva quanto perigosa.

No seu discurso em Davos, na semana passada, Henry Kissinger recomendou “sensatez” à Ucrânia, para que se possa acabar com a guerra e regressar ao “anterior statu quo”. Por outras palavras, a Ucrânia deve ceder os territórios que a Rússia já ocupou, a Crimeia e o Donbass, como recompensa por desencadear três meses de carnificina e causar a maior crise de refugiados da Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Os praticantes da Realpolitik precisam de compreender que a Ucrânia não luta apenas pelo território, como num jogo de Risk, mas pelas pessoas que lá vivem. O nome de Bucha, nos arredores de Kiev, será para sempre recordado como um local de crimes de guerra hediondos cometidos pelas forças de ocupação russas após apenas algumas semanas. Por todos os locais onde o exército de Putin passou, temos uma lista perturbadora de tortura, violação, assassinato e desaparecimentos forçados. Há infra-estruturas civis e críticas que são deliberadamente visadas e há cidades inteiras, como Mariupol, que estão agora inabitáveis – bastaram poucos meses para tamanha miséria e parece impossível imaginar o que acabará por se revelar ao longo dos anos. Quando os ucranianos ouvem que devem “desistir” do território, isso é sinónimo de abandonar os nossos compatriotas neste cenário.

E o terror não acaba quando as forças russas “libertam” uma cidade. Esta invasão nunca foi para proteger território – em vez disso, trata-se de engenharia social à escala real por um regime que não acredita na existência da identidade ou do Estado ucraniano. Há vídeos a circular em canais no Telegram, filmados nas regiões agora ocupadas de Kherson e Zaporizhzhia, que mostram residentes aterrorizados, obrigados a recitar confissões forçadas, onde confirmam que “concluíram um curso completo de desnazificação”. Esta grotesca experiência faz lembrar a lavagem cerebral aos uigures, minoria muçulmana, pelo governo chinês nos campos de concentração de Xinjiang. Mas, aparentemente, a Ucrânia tem de entregar o nosso povo a estes algozes, em nome de um “acordo negociado” inexistente com a Rússia.

Se as vidas dos ucranianos tiranizados não suscitarem suficiente preocupação pela tomada de medidas, então apelaria ao sentido de pragmatismo dos decisores políticos. A guerra na Ucrânia não começou em 2022, mas em 2014, quando as forças russas invadiram e ocuparam ilegalmente a Crimeia, Donetsk e Lugansk, com uma tímida resposta da comunidade internacional. Será que esta abordagem cautelosa saciou, de algum modo, a sede de Putin por novos alvos? Será que as democracias ocidentais gozaram de um período de paz em troca de dar ao Kremlin o que queria? Desde o bombardeamento de civis em Alepo até ao uso de armas químicas nas ruas de Inglaterra, passando pelo financiamento da violenta repressão da ditadura bielorrussa contra os protestos, Putin tem-se empenhado numa campanha de desestabilização global e continuará a fazê-lo, caso não seja vigorosamente combatido.

Chegar a acordos é algo que não faz parte do vocabulário de Putin. Sabemos isto pelos enganos que infligiu aos seus próprios cidadãos. Quando se tornou Presidente da Rússia, em 2000, Putin propôs um contrato social efectivo com o país: em troca de uma economia forte para retirar o país da pobreza pós-soviética, as liberdades políticas seriam severamente restringidas. O que se seguiu foi uma orgia de cleptocracia onde os lucros das abundantes reservas de petróleo e gás do país foram desviados para as contas bancárias da elite e gastos principalmente no Ocidente. O contrato com o povo russo foi violado desde o início e a distracção deste facto foi proporcionada pela conquista imperial regular de Estados vizinhos.

Com a guerra, o objectivo original do Kremlin era ocupar toda a Ucrânia numa questão de dias e é quase certo que, caso o tivessem conseguido, outros países, como a Moldova ou o Cazaquistão, teriam sido os alvos seguintes. Talvez ainda sejam. A Bielorrússia foi, efectivamente, anexada em tudo menos no nome. O que Kissinger, certos governos europeus e outras pessoas pedem é uma rendição e apaziguamento efectivos que só irão suscitar mais ameaças à segurança.

Pode ser verdade que a inflação é uma questão muito maior para os eleitores, e que as perturbações nos mercados globais de alimentos e energia venham, provavelmente, a intensificar-se nos próximos meses. A implicação de que isto é, de alguma forma, culpa da insistência da Ucrânia em lutar pela sua sobrevivência, e não uma consequência do bloqueio naval russo dos portos ucranianos no Mar Negro, que impede dezenas de milhões de toneladas de cereais de chegarem ao seu destino, é uma leitura errada do que está a acontecer. A recente sugestão da Rússia, de que poderia reabrir as exportações de cereais da Ucrânia em troca de um alívio das sanções, devia ser suficiente para eliminar todas as dúvidas na cabeça de qualquer pessoa sobre qual é a origem da actual instabilidade global.

Face a uma campanha genocida, os ucranianos não devem ser aconselhados a negociar a sua existência. Nos últimos dias, falei com colegas defensores dos direitos humanos da Síria e da Líbia, ambos países em que forças e mercenários russos semeiam a morte e a destruição com total impunidade. O mundo não pode permitir que a Ucrânia seja acrescentada a esta lista. Não seremos os últimos. Aqueles que mascaram o seu cinismo com o chamado pragmatismo precisam de voltar à escola e aprender que a única forma de derrotar quem faz bullying é enfrentá-lo.»

Presidente do Centro para as Liberdades Cívicas, uma ONG ucraniana dedicada à defesa dos direitos humanos
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