15.11.18

Porque é que a democracia está a vacilar?



«Jair Bolsonaro, vencedor das presidenciais do Brasil, é um hiper-nacionalista da extrema-direita, apaixonado por armas e um fraco adepto da comunicação social. O facto de ele não estar desenquadrado no meio dos líderes globais de hoje - incluindo os líderes de algumas das maiores democracias do mundo - deve preocupar-nos a todos. E isso leva-nos à seguinte questão: porque é que a democracia está a vacilar?

Estamos num ponto de viragem histórico. O rápido progresso tecnológico, particularmente o surgimento da tecnologia digital e da inteligência artificial, está a transformar a forma como as nossas economias e sociedades funcionam. Ainda que essas tecnologias tenham trazido benefícios importantes, também levantaram sérios desafios - e deixaram muitos segmentos da população a sentir-se vulneráveis, ansiosos e zangados.

Uma consequência do recente progresso tecnológico tem sido um declínio na proporção relativa dos salários no PIB. Como um número relativamente pequeno de pessoas reivindicou uma fatia crescente do bolo, na forma de rendas e lucros, a crescente desigualdade de riqueza e rendimentos alimentou a frustração generalizada com os arranjos económicos e políticos existentes.

Já lá vai o tempo em que se podia contar com um emprego fixo nas fábricas para pagar as contas indefinidamente. Com as máquinas a assumirem uma parte importante dos empregos na produção industrial, as empresas estão a procurar cada vez mais trabalhadores com elevada qualificação em áreas que vão da ciência às artes. Essa mudança na procura de competências está a alimentar a frustração. Imagine que, depois uma vida inteira de musculação, lhe dizem que as regras mudaram e que a medalha de ouro não será atribuída ao wrestling, mas sim ao xadrez. Isso será enfurecedor e injusto. O problema é que ninguém faz isso deliberadamente; mudanças deste tipo são o resultado da evolução natural da tecnologia. A natureza é muitas vezes injusta. O ónus de corrigir a injustiça está do nosso lado.

Estes desenvolvimentos contribuíram para as crescentes disparidades ao nível da educação e das oportunidades. Há muito que um contexto de maior riqueza aumenta as oportunidades de uma pessoa receber uma educação superior e, assim, conseguir empregos com salários mais altos. À medida que o valor das habilidades mecânicas no mercado de trabalho diminui e a desigualdade de rendimentos aumenta, essa diferença deverá tornar-se cada vez mais pronunciada. A menos que transformemos os sistemas de educação para garantir um acesso mais equitativo à formação de qualidade, a desigualdade tornar-se-á cada vez mais enraizada.

O crescente sentimento de injustiça que acompanha estes desenvolvimentos penalizou a "legitimidade democrática", como Paulo Tucker discute no seu livro Unelected Power. Na nossa economia globalizada profundamente interconectada, as políticas de um país - como barreiras comerciais, taxas de juro ou expansão monetária - podem ter efeitos colaterais de longo alcance. Os mexicanos, por exemplo, não precisam de se preocupar apenas com quem elegem para presidente; também precisam de se preocupar com quem chega ao poder nos Estados Unidos - um resultado sobre o qual não têm voz. Neste sentido, a globalização leva naturalmente à erosão da democracia.



Neste contexto, a actual transformação da política não deveria ser surpreendente. A frustração de grandes segmentos da população criou um terreno fértil para o tribalismo, que políticos como Trump e Bolsonaro exploraram avidamente.

A ciência económica dominante baseia-se na suposição de que os seres humanos são motivados por preferências dadas exogenamente - o que os economistas chamam de "funções de utilidade". Embora os pesos relativos possam diferir, todos os indivíduos querem mais e melhores alimentos, roupas, abrigo, férias e outras experiências.

O que essa interpretação negligencia são os "alvos criados" que surgem à medida que nos movemos pela vida. Não nascemos com um impulso essencial para chutar uma bola para dentro de uma baliza. Mas assim que começamos a jogar futebol, ficamos obcecados com isso. Não o fazemos para obter mais comida ou roupas ou casas. Torna-se uma fonte de alegria em si. É um alvo criado.

Tornar-se um fã de desporto é semelhante. Ninguém é essencialmente um adepto do Real Madrid ou do New England Patriots. Mas, através da família, da geografia ou da experiência, pode-se ficar profundamente ligado a uma determinada equipa desportiva, a ponto de isso se tornar uma espécie de identidade tribal. Um fã é capaz de apoiar os jogadores não pela forma como jogam, mas por causa da equipa que representam.

É esta dinâmica que está a alimentar o tribalismo na política nos dias de hoje. Muitos dos que apoiam Trump ou Bolsonaro não o fazem por causa do que Trump ou Bolsonaro farão, mas sim por causa da sua identidade tribal. Eles criaram alvos relacionados com a pertença à "Equipa Trump" ou à "Equipa Bolsonaro". Isso prejudica a democracia ao dar aos líderes políticos uma licença que eles não tinham antes. Eles podem fazer o que querem sem serem constrangidos pela vontade do povo.

Como é que podemos corrigir esses problemas, proteger os vulneráveis e restaurar a legitimidade democrática? A resposta não é clara. O que é evidente é que continuar na mesma não resolverá os problemas.

A Revolução Industrial - outro importante ponto de inflexão para a humanidade - trouxe enormes mudanças regulatórias e legais, desde as várias Leis das Fábricas no Reino Unido até à implementação do imposto sobre o rendimento em 1842. Também trouxe o nascimento da economia moderna, com grandes avanços por parte de pessoas como Adam Smith, Augustin Cournot e John Stuart Mill.

Mas estamos numa viragem histórica que impõe que repensemos o tema da economia política. O dinossauro não tinha capacidade de auto-análise e caminhou em direcção à extinção há 65 milhões de anos. Nós também corremos o risco de um colapso civilizacional. Mas, felizmente, somos a primeira espécie com capacidade de auto-análise. É aí que reside a esperança de, apesar de todo o tumulto e conflito que vemos à nossa volta, acabarmos por evitar o "risco dos dinossauros" e nos afastarmos da beira do abismo.»

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2 comments:

nuno renato marques disse...

Não acredito que a democracia esteja a vacilar. É preciso esperar que ela reaja. Parece haver uma doença que ainda não está diagnosticada. Novas forças surgem, mal os sintomas ditatoriais chegam ao poder. Quando acontece uma ditadura, esta cria o protesto das vísceras do povo que protesta. A democracia é alérgica às ditaduras. As características da ditadura não se comprazem com maiorias. Os defensores da ditadura são sempre uma minoria. Também no exército e na policia, que são o modo de uma ditadura operar, não pode haver uma maioria que englobe os que mandam e os subjugados (a maioria) que já teve suficientes lições de História que se manifestam a todo o momento no corpo social.
Mal o povo (também o povo do exército e da policia) sinta que uma minoria, sustentada por um pequeno grupo de indivíduos que cegos pelo poder queiram impôr-se, criando riqueza para um pequeno grupo e pobreza para todos os outros, estes vêem-se obrigados a contestar com o que têm, usando os meios que já estão ao serviço de todos.
O povo é alérgico à ditadura; a maioria faz-se ouvir nas ruas, faz-se ler nos jornais, e falar na TV.
Não é possível esconder e atingir o poder, através da propaganda, pois esta está doente de morte: a propaganda já não consegue pôr quem quer no poder, pois o povo é a sua própria propaganda.
O poder pode não ser (nem deve) ser exercido pelo povo, mas para o povo. Se há insatisfação com os representantes do povo que ocupam o poder, por outro lado, os representantes legítimos têm de surgir, e mais do que aceites pelo povo, eles são provenientes do povo, fazendo o que o povo deseja, e isso é a democracia.
A ditadura é morta há nascença. Ela não pode crescer, pois não é igual à liberdade dos homens.
Provenham de onde provenham, diferentes em dinheiro, cultura ou outras formas de poder, de todos os lados, se afunda a ditadura.

estevesayres disse...

Esta democracia burguesa, encontra-se abeira de um precipício!!! A não ser que deixem de votar nos mesmo de sempre, ai sim as coisas irão mudar de certeza…

Se me perguntarem, será para melhor? Penso que sim porque pior que isto só no tempo dos ditadores, Salazar e Marcelo (não este o padrinho)….